Antes de nascer a
caçula, a família ia para Capital uma vez por mês para fazer uma
porção de terapias. Hospedavam-se na casa da avó paterna, a
velhinha conhecida como Sossó.
Sossó era uma
médica obstetra de renome à época. Era referencia para gravidez de
alto risco, muito conhecida por sua ousadia e pela maneira intima,
carinhosa e descontraída na lida com suas pacientes.
Bem nascida, de
família burguesa de uma capital dos trópicos, Sossó orgulhava-se
de nunca ter pegado numa vassoura. Tratava os empregados com a devida
distância de uma aristocrata e dizia que os criados eram como os
cães, se bem tratados e alimentados, permaneceriam fieis em sua
subserviencia.
Sossó estava
sempre com um molho de chaves pendurada no meio do sutiã, e andava
pela casa fazendo barulho tal qual uma carcereira. Estavam ali as
chaves de todos os comodos da casa, mas principalmente a de seu
banheiro particulr, a de seu quarto e a da dispensa, que estavam
sempre trancados. Quando a cozinheira precisava pegar um alimento no
quarto da dipensa, Sossó passava longos minutos tentando encontrar a
chave em meio as dificuldades da visão de uma idade avançada, de um
corpo cançado.
Mas não se engane
com esta primeira imagem de Sossó. A velhinha é muito bem humorada,
está sempre rindo e acha tudo bom. À presença de algum nervosinho,
Sossó solta uma risada suave e diz duas ou tres palavras que fazem o
cara se sentir um tolo por estar naquele estado.
Muito perspicaz,
Sossó reconhecia um arquétipo no arriar das malas, e apesar do
constante bom humor, é desconfiada por natureza.
É dada aos
bordões, do tipo: “quem guarda, tem”, “mantenha simples”,
“nada como ser magra!”, e outros que posso me lembrar depois.
Sossó gosta de
dizer que é uma jovem senhora. Desde que se aposentou, há doze
anos, anda mergulhada em seus livros e não deixa de ler o jornal
matinal, aquele de papel mesmo. Dorme duas horas por dia e toda a sua
atividade esta voltada para a intelectualidade.
Um tumor nmalignino
encontrado em sua cabeça antecipou sua aposentadoria. Quando
descoberto, o tumor já ia avançado e os médicos não puderam
falsear o diagnóstico diante de uma colega. Para eles a situação
era terrivel e ela não sobreviveria por mais de um ano, com ou sem
cirurgia. Sossó riu diante dos colegas e dise que eles estavam
anganados. E que ela voltaria para provar que eles estavam enganados.
Tomou um avião com o filho caçula, e foi para São Paulo, nos
melhores hospitais, em busca de alguém que topasse operá-la.
Encontrou, no famoso Albert Eistein, um jovem cirurgião que ficou
intrigado com sua persistência.
- Veja dra. Solange,
a literatura da conta de quea média de sobrevida do tumor cerebral
no estágio que está o da senhora é de 1 ano. O caso mais longevo
foi de um japonês, 3 anos. Eu não posso enganar a senhora.
- Eu sei meu filho,
mas veja, o tumor está num estágio avançado como o senhor diz, mas
eu estou inteirinha, não me afetou em nada, então eu digo que se o
senhor me operar, eu vou passar esse japinha.
O jovem cirurgião
pareceu refletir um instante,
-A senhora é
realmente encantadora. Deu a volta na mesa, pegou sua mão e a
beijou.
Com um sorriso de
vitória, Sossó disse, Obrigada meu filho.
Bem, Sossó fez a
cirurgia, deu tudo certo, saiu do hospital e a primeira coisa que fez
foi acener o seu cigarrinho. Ela seguiu direitinho o protocolo, fez
as quimioterapias, que para ela era como ir a uma excurssão. Sempre
que ia a São Paulo levava um dos filhos, para não estar a andar
pela rua sozinha. Os anos se passaram, Sossó sobreviveu, esfregou-se
com bom humor na cara dos colegas que se recusaram a operá-la. Foi
de fato um grande sucesso, também para o jovem cirurgião que a
operou, ela finalmente mudou a literatura do caso e deixou japonês
para trás.
A parte que não
ficou tão evidente é que Sossó parecia estar diferente, com pouca
memória, as vezes confusa, despreocupada demias. Como estava agora
aposentada, passou a dedicar-se inteiramente aquilo que lhe dava
realmente prazer: a leitura. Passaram-se 12 anos e, imersa em seus
estudos, quase que ausente qualquer esforço físico, o corpo de
Sossó foi fenecendo e hoje parece que é bem mais velha do que seus
67 anos. Cada vez mais caminha com dificuldade e precisa ser guiada
na rua para não topar com um poste ou cair ao meio fio.
Uma vez por mês, e
durante uma semana Sossó recebia Oto e os pais para cumprir um crono
grama de terapias na capital. Era fato que as assistencias
normalmente recomendadas para o caso de Oto não poderiam ser
encontradas em cidades pequenas, assim que a família, sem ter
condições psicológicas de se mudar para a capital, encontrou a
solução nas viagens mensais.
A casa de Sossó
era meio que um mausoléu, grande, cheia de quartos, uma decoração
de péssimo gosto, peças desconexas e descontextualizadas,
provavelmente remanescentes de consultórios onde atuava a doutora.
Sossó não gostava de plantas e era capaz de matar de sede a um
cacto. Tinha um gato que fazia do canteiro externo que dava para toda
a lateral da casa no segundo andar, sua caxinha de areia, a qual não
era limpa há muitos anos.
A casa era fria e
impessoal, e na cozinha habitava um ser, que era quem cuidava da
limpeza e alimentação. Dona Amelinha era uma negra velha e gorda,
que andava curvada pelo peso do corpo e da idade e por isso fazia
tudo com uma certa dificuldade. Falava pouco e nunca expressava
opiniões pessoais. Era daquelas pessoas que preferem ficar quietas,
até mesmo engolir sapos, em nome da manutenção do emprego. Não
que fosse devota ao silêncio, de jeit nenhum. Gostava sim de falar
e era até certo ponto expansiva demiais, mas no local de trabalho,
retesava sua naturalidade.
Amelinha passava a
maior parte do tempo na cozinha, e à porta fechada. A mãe de Otto
metia a cara no computador a trabalhar e parecia ausente. O pai
ficava pra lá e pra cá, saindo e voltando, com tanta frequencia que
nem mais se dava ao trabalho de dizer aonde ia. Que bastasse um “vou
ali e já volto”.
Otto ficava a vagar
por aquele mausoléu, sempre a tentar fazer coisas que não podia,
que incluia quebrar ou sujar coisas. Dona Amelinha era quem estava
então pronta para vigiar o menino. Outra coisa que ele passava o dia
a fazer era procurar comida. E nestas situações quem também está
sempre é Dona Amelinha. Desde pequenino, agarrava em sua canela e
dizia: “Abi” Muitas vezes ela interpretou esse sonido como
signficando a palavra ‘abre’. Ela imaginava então que ele estava
pedindo para abrir a geladeira. Assim o fazia e a ação sempre
surtia algum efeito pois Oto ali encontrava algo que o agradasse,
como leite, iogurte ou bolo, e ficava tudo certo.
O que Terezinha não
sabia era que ‘abi’, para Oto, era uma cacofonia para a palavra
‘amigo’. Desde a tenra infância o garoto era fã do filme Toy
Story, cuja musica de abertura tem como refrão a frase: ‘amigo
estou aqui’. Otto sempre cantava assim; ‘Abi sutô aqui’. Com
seu infinito poder de síntese, a música toda virou esta pequena
expressão: ‘abi!’
Quando soube que a
palavra sozinha significava a sentença ‘amigo estou aqui’,
Terezinha se emocionou, teve um lampejo de esperança pela raça
humana e fortificou imensamente o laço afetivo com o garoto.
Desde então,
quando Otto sentava na mesa da cozinha, para esperar o almoço ficar
pronto enquanto olhava a movimentação da negra velha, ela sentia
que estava lhe sendo feita companhia. Passou a prosear com ele e,
valendo-se de sua mudez e aparente inocência, contava causos
particulares e reclamava da vida.
Ela contou por
exemplo que preferia dormir ali naquele quartinho abafado que ficava
na área de serviço da casa porque voltar pra casa era muito penoso
e tomava muito tempo. O transporte de ônibus chegava a demorar mais
de duas horas e era sempre muito sofrido, com pontos lotados e
coletivos superlotados.
- Não é que nem
sardinha em lata, porque a lata é fresquinha. De manhã o calor já
é tanto que agente já fica é assando no forno mesmo, somos
sardinhas no forno!
Enquant que dormir
ali era Ok para Dona Terezinha, os filhos já estavam grandes e, se
antes ela tinha a incumbencia de tomar conta dos netos, agora se
desobrigava disso em benefício de um emprego.
Como o feijão do
turno não cozinhava nem com reza brava, a criada ia contando:
Eu sempre fui
independente, não me apego a ninguém. Ja tive um marido com quem
tive um monte de filhos, mas na hora que eu me enchi, peguei minhas
trouxas e disse adeus! Desde criança tive que me virar sozinha por
essas roças e nunca precisei mesmo de ninguém.
Neste momento,
Terezinha entreabriu a porta pra ver se alguém vinha lá. Sentou na
mesa de frente para o guri, e num tom mais baixo, em postura de quem
cochicha começou a contar sua longínqua história.
Sabe Otto, eu perdi
minha mãe muito cedo, tinha 7 anos. Agente morava num sítio, lá
pras bandas de Mata Grande, criava galinha, tinha pomar e até um
rádio de pilha. Nossa mãe era costureira, muito amorosa, tomava
conta de nóis tudo. Nosso pai era pescador e quase não parava em
casa., passava a semana toda no mar. Um nossa mãe adoeceu, caiu de
cama, e num demoro dela morrer. Éramos 9 filhos. No dia seqguinte,
nosso pai se arrumou, se perfumou e se engravatou, e saiu pra
enterrar a mãe. Disse que não nos levava porque era muito menino!
Ele pegou sua valise saiu por aquele portaõ e nunca mais voltou. Se
enterrou a mãe ou não até hoje não sei.
Nós ficamos ali,
dias a fio, esperando o pai voltar. Nossa irmã mais nova tinha 3
anos, a mais velha tinha 13. Eu tinha sete anos, eramos 5 meninias e
4 meninos. Rapidinho o que tinha de comida foi acabando. As foia iam
caindo, e nada do pai voltar. Os vizinhos, vendo aqueles mininu tudo
com fome, as vezes ia levar um pirão, uma bacia de manga madura, um
escaldado de agua fria.
Os vizinhos que iam
ajudar agente, entravam pelo sitio olhando tudo em volta, sempre
passavam por dentro da casa e reparava em tudim. Um dia um vizinho
levou pra gente uma bacia grande do caruru que tinha sobrado. Ele viu
o rádio, perguntou porque agente não ligava. Meu irmão mais velho
respondeu que agente não tava ouvindo porque não tinha mais pilha.
O vizinho então falou que ia levar para colocar pilha. Nunca mais
vimos o rádio.
Painho tinha uma
geladeira a gás. Como o gás acabou e ninguém trocou, outro vizinho
achou boa idéia levar pra casa dele, pois geladeira parada sem uso
se perde rápido por causa do salitro. No dizer dele, como era perto,
ele poderia trazer a geladeira de volta assim que agente trocasse o
bujão. O problema foi que ele levou o casco também, e se agente não
podia trocar o gás, quem dirá comprar um novo!
Outra vizinha,
muito amorosa com todos nós, sempre trazia as sobras do almoço. Ela
dizia que fazia sempre um pouquinho mais da conta pro poder trazer
pra gente. Ela dava de comer aos menores e colocava a caçula pra
dormir no sofá. Ela adorava aquele sofá. Tanto que um dia ela levou
o sofá. E assim foi, pouco a pouco, cada prato de comida nos custava
um móvel, um lençol, uma almofada, de modo que agente acabou com a
casa purinha. Até as telhas da garagem foram tiradas. Não havia
mais nada pra levar de nóis. Então as visitas comecaram a dimunir,
cada vez cada vez, e chegou uma hora que quase ninguém mais vinha
trazer comida pra gente.
Agente tava
passando fome de verdade. O cacula morreu ali no meio da gente,
porque ele tava comendo o barro do chão. Morreu estoporado. Ele
tinha 6 anos!Otto olhou com angústia para Dna Amelinha, não se sabe
se por pêsames ou pela demora de cozer do feijão.
Pois é meu filho!
Tudo isso eu vivi!
Dona Amelinha
respirou fundo e foi olhar o feijão. Ela pegou o alface que escorria
na peneira, trouxe para a mesa, sentou-se e começou a organizar a
salda na travessa.
Enquanto continuava
a história.
A notícia bárbara
correu por toda aquelas bandas e o povo da redondeza parece que
lembrou da gente. Minha irmã mais velha era quem cuidava de nós.
Dava banho, punha pra dormir, dividia as doações, as vezes
cozinhava um feijão, acocada na fogueira, passava vassora e
gandanhava o sitio.
De certa feita, o
vendedor de queijos ficou sabendo da nossa história, e começou a
nos trazer comida todos os dias. Ele passava por lá porque ia buscar
os queijos nas fazendas de gado que aquelas estradas levavam. Ele era
um homem grande, forte, tatuado. Naquela época não era comum a
pessoa se tatuar. Todo mundo sabia que ele andava armado. Ele mesmo
fazia questão de mostrar, dizia que era pra se defender porque ele
andava por muitas estradas desertas.
Na mão daquele
homem agente tudo engordou. Ele trazia quentinha pra gente, com carne
com feijão com tudo. E também deixava um litro de leite. Ai Deus
agente caía matando naquela quentinha. Minha irma não podia nos
separar porque estava atendnedo o homem e daí era selvageria geral,
aquele bando de mininu faminto disputando uma quentinha!
Dona Amelinha solta
uma risada larga, depois silencia e se perde em suas memórias por
alguns instantes.
Pra minha irmã ele
levava chocolate. Ele gostava muito dela sabe, pelo menos era o que
agente achava, porque só ela ganhava chocolate. Ele tinha que
entregar o chocolate escondido no quarto, porque não ia dar pra
todos. Na época agente não sabia a verdadeira intenção dele,
agente não sabia o que acontecia no quarto, agente nem prestava
atenção estavamos muito ocupados com a quentinha.
Um dia eu espiei e
vi que ele subia em cima dela. Eu passei a espiar e vi, todas as
vezes, a mesma cena. A minha irmã…..
...eu também perdi
minha inocencia naqueles dias…
Dona Amelinha
levantou-se, foi à panela e mecheu no pino, de modo a deixar sair a
pressão.
Acontece que não
só eu, mas o pessoal de lá começou a desconfiar e o causo rolou de
cochicho em cochicho. Daí meio que sujou pro Gil do queijo porque
todo mundo já tava comentando.
Um belo dia ele
veio e fez sua última visita. Como de costume, trouxe um quentinha,
e enquanto nos degladiávamos pela carne, ele levou minha irmã pro
quarto pra lhe dar o chocolate. Fez ali sua barbaridade rapidamente
e, enquanto abotoava a calça, matutava uma maneira de roubar nossa
irmã Gê. Na saída do portão ele se abaixou para Gê e perguntou,
você quer ir tomar um sorvete com o tio? Gê fez que sim com a
cabeça, ele a pegou no colo, colocou dentro do carro e arrancou. Ela
tinha 5 anos e nós nunca mais a vimos. Gil continuava passando por
aquela estrada mas não parava mais. Os vizinhos ficaram intrigados
com o sumiço da pequena, e se dispuseram a ajudar a procurá-la, mas
quando contamos pra eles que foi Gil quem a tinha, mudaram o tom.
Ninguem ali sabia nada desse homem, onde morava nem de quem era
filho. O povo só sabia que ele passava lá pra buscar queijo e que
andava armado. Não apareceu um para conforntar aquele carcamano. Um
dia, numa de suas paradas no bar da estrada, ele sempre parava pra
tomar uma cachaça, rolou o assunto. Ele esbravejou feitoleão
enjaulado, disse que eram mentira dessas crianças. Que ele era um
homem honrado e que ele era capaz de atirar na cara de quem ofendesse
sua honra. É nisso que dá você querer ajudar os outros! E ficou
por isso mesmo.
Dona Amelinha
verificava a consistencia do feijão.
Só depois de
muitos anos eu vi esse homem, lá na Baixa do Delegado. Eu reconheci
ele na hora! Como sou ousada, fui logo perguntar pra ele onde estava
minha irmão. Ele me olhou assustado e tentou sair, mas eu, que já
era grande e forte, garrei no braço dele.
Ele começou a
desembuchar, disse que tinha criado Gê por quase 10 anos. Mas que
ela, ingrata como todas as mulheres, fugiu da fazenda. Eu apertei o
braço dele com uma raiva! E disse, o senhor deve ter sido muito bom
pra ela querer fugir. Ele disse, eu fiz o que pude, eu a sustentei.
Eu disse, seu filho
da puta, desculpa Otto, mas foi assim mesmo que eu disse, seu filho
da puta, a minha irmã Josileine virou meretriz depois que vosmece
fez o que fez com ela.
Com aquela cara de
cinico assustado ele disse, eu não tenho culpa, eu fiz o que pude,
se não fosse por mim vocês tudo tinha morrido de fome naquela
época. Eu não posso ser culpado pelo que Josileine fez depois. Me
solta ou vou te mandar prender sua negra gatuna. Disse isso e puxou o
braço.
Então no seu dizer
eu te devo gratidão!
Toma aqui a minha
gratidão. Eu busquei la no fundo da minha garganta uma bola de
catarro e cuspi ela na cara daquele disinfeliz.
Amelinha deu uma
risada e concluiu sua história. Tem graça, mas eu não consigo rir
disso. Depois que ele roubou Gê, a história de Gil com minha irma
Jucileine ficou pairando pelo ar. Não demorou muito, a coisa pegou.
Outros homens começaram a visitar minha irmã.
A criada se deteve
com um pouco de pudor diante de uma criança. Desculpa eu te contar
isso assim, mas…..acho que você nem entende isso né!? De primeiro
eles traziam comida, depois minha irmã só estava aceitando dinheiro
mesmo. Foi assim que ela cuidou de nis por um tempão, nem sei
quanto.
Aconteceu que, os
sitiantes em volta, começaram a achar aquilo um absurdo, e ficar
cochichando e apontando pra nós, e que aquilo não podia continuar.
Vez em quando vinha
um dar conselhos a minha irmã, dizendo pra ela parar com isso, que
todos ali eram cristãos e que Deus não se agradava daquilo.
E Deus se agrada de
ver nós aqui passar fome?
O minha filha, a
vida é assim mesmo, agente veio nesse mundo pra sofrer, tem jeito
não. Você sabe, nóis aqui tudo é fraco, vai sobrevivendo como dá,
e quando agente pode, ajuda os outros. Quando agente pode agente
ajuda vocês também não é verdade? Então, não precisa de ocê
fazer isso.
Mas dona Coisa,
agente não tem o que comer!
Eu sei minha filha,
não se preocupe, Deus vai dar um jeito em tudo. E lhe deu um abraço
fraterno.
Jucileine claro,
achava que o jeito que Deus dava era mandar aqueles homens todos.
Um dia se juntaram
e vieram de bando, ameaçando a nós e a minha irmã, que nós
tínhamos que ir embora, que ali era lugar de família, de pessoas de
Deus, e que nós estavamos entregue ao cão. A dona Dulce, que tinha
o sítio mais pra frente um pouco,e que o marido dela já há muito
tempo trazia comida pragente, garrou num pedaço de pau e gritou:
cobra agente tem que matar é no ninho!
Resultado meu filho
é pernas pra que te quero. Saimos correndo ladeira abaixo com a
roupa do corpo.
Enquanto colocava o
feijão cozido na terrina, Otto esbugalhava os olhos de desejo, via
que estava no fim sua aflição.
Agente ficou
vagando na rua por meses. Não tínhamos onde dormir. Um dia
resolvemos por bem voltar para aquele sítio da Mata Grande. Quando
chegamos lá não tinha mais nada. O vizinho do lado esquerdo tinha
puxado sua cerca um pouco mais pra cá, o da direita também, e o do
fundo também. Cada qual pegou seu quinhão. A casinha de barro tinha
sido desmanchada. Seu Geraldo nos viu e nos botou pra correr, saiam
daqui seus pivetes não tem mais nada de vocês aqui, ou vou chamar a
polícia.
Nós continuamos
vagando pela cidade até dar com outros meninos de rua no cais do
porto. No meio daquela comunidade de meninos órfãos, sentiamos
aquecidos numm seio familiar, por mais estraho que pareça. Ali todos
nós caímos na vida, os que sobreviveram.
Jucileine continuou
no meretricio e a caçula seguiu os passos dela. Eu não queria isso
pra mim. Deus olhou pra mim e eu consegui ir trabalhar numa casa de
família, onde fiquei alguns anos. Depois me casei, tive meus filhos.
Aqui dona Amelinha
já está a servir o prato do menino, ao mesmo tempo que da uma
gargalhada. Eu me sentia forte e poderosa, quando meu marido me
azuou, botei ele pra correr e criei meus mininu sozinha. Sempre
trabalhando na cozinha dos outros. Nunca dependi de ninguém graças
a Deus.
Come meu filho.
Qué suco?